quinta-feira, 21 de abril de 2016

Crônicas dos Cavaleiros: Marin, a feiticeira



Aquela noite era distinta. Havia na obscuridade algo que me eriçava os pelos da nuca. Eu já cavalgava havia nove dias, para norte e noroeste, e depois de novo para norte, cada vez mais distante da minha sucinta cabana, seguindo sem desvios a trilha de uma corja de salteadores selvagens. Cada dia fora pior que o anterior. Aquele estava sendo o pior de todos. Um vento frio vindo do norte fazia as árvores sussurrarem. E elas com sua onipotência me diziam as maiores infâmias.

Há muito tempo não sabia mais o que era real ou onírico. Meu ginete, que estava tão cansado quanto eu, relinchou após um longo tempo, suplicando-me uma efêmera pausa. O crepúsculo aprofundou-se. O céu sem nuvens tomou um profundo tom de púrpura, a cor de uma velha nódoa, e depois se dissolveu em negro. As estrelas começaram a surgir. Uma meia-lua se ergueu e fiquei grato pela luz.

Meus olhos estavam presos na distância e meu rosto pensativo. Um vento frio trespassou por entre as árvores. E meu manto de zibelina agitou-se nas minhas costas como uma coisa semiviva.

– Estamos perto de casa – disse acariciando o focinho do meu cavalo.

Como se pudesse compreender, ele relinchou.

– Que saudades dela – murmurei de forma quase inaudível.

Eu trajava uma rústica cota de malha marrom e calções de linho negros forrados com lã. Minhas roupagens haviam me salvado de fenecer em jornada nos lugares mais frios de Varrock. Contudo o tempo frívolo agora se convertera a noites úmidas e quentes à medida que me aproximava de casa, e isto transformou meu trajeto num castigo febricitante.

Optei por findar o percurso caminhando até a cabana. Assim podia refletir sobre minhas gestas. Apanhei da cela apenas minha adaga negra e meu cantil de barro. Coloquei a pequena mas poderosa adaga de guerra dentro de minhas vestes e meu cantil com água embaixo do braço. Incitei meu cavalo a avançar dando-lhe um leve tapa no lombo, numa rápida replica meu egrégio cavalo ficou em pé nas patas traseiras e partiu rumo a nosso lar.

“Dentre os mortos da alvorada
Explorando a madrugada
Com meu gládio partirei
E o mal derrotarei”

Os versos da balada de Sir Gared me vieram à mente na terna e silente harmonia da floresta. A lancinante dor que dilacerava meu peito era causada pela falta que sentia dela. Pois não havia mais mistérios para mim sobre meus sentimentos, me sujeitei à maior das graças e à pior das dores. Meu coração em um ato de felonia se entregou de todas as formas à mais grácil e misteriosa mulher. Marin era uma feiticeira ávida pelos mistérios da magia. Intrépida e destemida em tudo o que perpetrava, ela fora a responsável integralmente por meu despertar em sentimentos.

“A morte chega lentamente
Destrói aquele guerreiro que sente
Um medo incomum de morrer lutando
E não perecer amando”

Cessei minha cantoria e diminui meu passo no momento que fui tomado por uma invulgar sensação. Vi um movimento com o canto do olho. Sombras pálidas deslizaram pela floresta. À medida que os vultos surgiam e sumiam, ramos agitavam-se gentilmente ao vento, coçando-se uns aos outros com dedos de madeira. Larguei meu cantil ao chão e puxei minha adaga, era claro para mim que havia algo peculiar na floresta.

– Quem está aí? Apareça se tiver coragem – provoquei.

No exato momento em que cadenciei essas palavras uma sombra emergiu da floresta e parou na minha frente. Era alta, descarnada e tinha seus ossos à mostra. Suas feições decompostas eram demasiadamente lívidas e onde deveria haver dois olhos, vislumbrei apenas duas órbitas ocas. Sua armadura rutilava em cores à medida que se movia, adaptando-se ao local onde se prostrava. Dei dois passos para trás acometido por um pavor latente.

– O que é você? – indaguei brandindo a adaga. – Não se aproxime mais – bradei ao tom de um exímio guerreiro.

Outras criaturas começaram a surgir das trevas da floresta. Olhei para todas as direções e me senti cercado de todas as formas, porém não foi o temor que estampei em meu semblante. Minha face se contorceu em um sorriso petulante e heroico, pois sendo um guerreiro conspícuo, morrer em uma peleja como aquela seria um orgulho.

– Venham brincar – aticei meus oponentes girando minha adaga acima da cabeça.

Olhei a situação com cautela, nem todas as criaturas portavam espadas, contudo as que portavam traziam objetos para mim desconhecidos. Nenhum metal humano tinha entrado na forja daquelas lâminas. Estavam vivas de luar, translúcidas, eram fragmentos de cristais tão finos que pareciam quase desaparecer quando vistas de frente. Havia naquelas coisas uma tênue cintilação azul, uma luz fantasmagórica que brincava com o natural e de certa forma eu sentia que aqueles objetos macabros eram mais afiados do que qualquer navalha.

A primeira espada veio pelo ar, tremendo.

Parei-a com minha adaga. Quando nossas lâminas se encontraram, não se ouviu nenhum ressoar de metal com metal, apenas um som agudo e fino, no limiar da audição, como um animal a guinchar de dor. Detive um segundo golpe, e um terceiro, recuei o passo, outra chuva de golpes chegou, e recuei outra vez.
Foi quando minha parada chegou tarde demais. A espada cristalina trespassou a cota de malha por baixo de meu braço. Soltei um agudo grito de dor. Meus dedos tocaram de leve aquela região atingida. E minha mão veio empapada de vermelho.

Repliquei o golpe de forma indolente. Erguendo com ambas as mãos a adaga e brandindo-a num golpe lateral paralelo ao chão, carregado com todo meu peso. A parada da criatura que combatia foi quase displicente.

Quando nossas lâminas se tocaram outra vez, o aço despedaçou-se.

Meu grito ecoou pela noite da floresta, e a adaga partiu-se numa centena de pedaços quebradiços como uma chuva de agulhas. Caí de joelhos, guinchando, e cobri os olhos. Sangue jorrou por entre meus dedos.

As outras criaturas, que antes apenas observavam, aproximaram-se uns dos outros, como que em resposta a um sinal. Todas as espadas se ergueram e notei que aquela era a hora de meu fim, pois quando elas caíssem o silêncio seria mortal.

Era uma espécie de assassinato frio. As lâminas pálidas atravessaram minha cota de malha como se fosse seda, senti a maior dor de minha vida. Abstive-me em um grito de agonia, sabendo que este seria o último de minha existência e por fim meus olhos fecharam. A última imagem que procurei ter foi a de minha amada sorrindo para mim.




Nunca imaginei que iria reabri-los, ainda mais quando meu despertar veio acompanhado de um tocar nos meus lábios. A sensação que provei foi incomum, fui sugado de um poço de trevas para a plena luz da vida. Meu corpo vibrava numa melodia uníssona e minha visão foi se adaptando aos poucos aos padrões convencionais. Tentei içar meu corpo para frente, pois o local onde repousava causava-me um desconforto nas costas, mas uma mão pequena e alva me deteve, e veio acompanhada da voz mais bela e doce de toda a natureza:

– Nem pense nisso, você acabou de voltar à vida, já está querendo se matar de novo?

Nesse momento minha visão voltou por completo e o rosto dela se moldou em minha frente. Meu coração, que minutos antes estava em total inércia, agora pulsava com o vigor da juventude. Marin usava um vestido longo de seda esvoaçante, que tinha detalhes com fios prateados no seu decote e mangas longas. Estava também envolta em uma capa de fio de ouro, atirada casualmente em seu ombro e atada com um broche de ouro vermelho.

– Eu morri? – perguntei com a voz trêmula.

– Só um pouquinho – ela respondeu com um sorriso doce. – Quase o perdi, não foi fácil trazê-lo à vida novamente, esses seres acabaram com você.

– O que são eles?

– São mortos não conformados com seus destinos, levantam de suas covas para matar e destruir tudo o que vive. Os tempos são sombrios, e quanto mais trevas, mais atraímos seres assim.

Não encontrei as palavras certas para dizer, talvez um agradecimento fosse o viável naquela situação. Contudo meu coração achava tão ínfimo um simplório pedido de agradecimento. Naquele momento desejei roubar do cosmo a estrela mais luminosa e entregar a ela: o astro mais incandescente de minha vida. Meus olhos brigavam com minha vontade de ficar acordado.

– Quando eu o encontrei naquela situação achei que havia perdido você para sempre – Marin disse em um tom triste.

– Mesmo que eu me entregasse à morte integralmente, você jamais me perderia – articulei pegando a mão de Marin. – O que o amor fez a morte não separa – sussurrei passando meu dedo indicador em sua mão.

– Não ouse nunca mais me dar um susto desses, guerreiro. – Marin ficou de joelhos perto de mim, nesse momento pude sentir seu cheiro e então a vida voltou ao meu corpo de verdade. – Sou nova demais para ficar viúva.

Ela acariciou meu rosto beijando-o de leve e mais uma vez fui beijado pela brisa do próprio viver, nossos lábios se tocaram logo depois, num gesto de fulgor e carinho, meu corpo se reacendeu numa chama de amor, que era bloqueada apenas pelo cansaço que sentia. Marin parecia capaz de notar minha condição interna, por esta razão se afastou logo depois de nosso beijo. Olhei-a com as sobrancelhas arqueadas e tudo que recebi de volta foi um risinho trocista:

– Quero que durma, está precisando dormir.

– Eu estava morto, ia dormir pela eternidade – argumentei como uma criança que não recebe uma ordem.

– Por isso mesmo, durma feliz sabendo que quando despertar estarei aqui velando seu sono, meu amor.

– Não, quero que vá ao mundo dos sonhos me visitar, promete que irá?

O olhar que recebi dela naquele momento nunca mais saiu de minha mente. Pois nele estavam todas as Marins que conhecia: a mulher doce, rigorosa, misteriosa, sedutora e apaixonante. Seu sorriso no canto dos lábios foi um sinal de que estávamos de acordo. Resfoleguei e meus lábios projetaram um tênue sorriso ao imaginar como seria nosso encontro em sonho, divaguei por longos minutos antes de me dar ao deleite de descansar integralmente. E antes de dormir senti a mesma sensação do meu despertar: meus lábios estavam sendo tocados gentilmente. Marin era e sempre será minha centelha divina, pois quando estou com ela, sinto-me vivo. E longe de sua magia e sedução meus propósitos terrenos parecem irrisórios. Encontrá-la no mundo dos sonhos não é algo impressionante, pois a vida ao seu lado já é, por si só, o maior de meus sonhos.

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